ALGAZINE

COOL ZINE DO BAIRRO

22:51

UMA ESCOLHA

Postado por Algazine |




Penélope balançava o corpo em movimentos aleatórios, sentada no meio do pátio, uma ilha isolada dos continentes formados por pequenos grupos amontoados, comunicando-se apenas por calor. Pela janela do dormitório, tinham visto a cidade ao longe queimando, queimando...
Correu até o outro lado do prédio para chamar os homens; queria que todos vissem aquele espetáculo! Então ficaram todos, quase todos, grudados às janelas, alguns pendurados às grades, alguns soltando gritos sem nexo, outros pulando deslumbrados, mesclados às mulheres de tal forma, com suas cabeças raspadas, que não se podia distingui-los, até que tal agitação os levou a dançarem por entre os leitos, provocando os poucos que haviam ficado de fora, alheados.
Apenas um dentre os internos não havia participado daquela festa inusitada: Julius mal vira o incêndio, já tinha ido ao alojamento dos funcionários, encontrando apenas provas de que estes haviam entrado em alguma espécie de pânico ou desespero que os levou a seus familiares ao longe... As chamas tão intensas lhe ajudaram a chegar ao escritório do diretor, trancado! Dele, saíam ruídos humanos que não prestavam a mínima atenção às suas batidas beirando ao descontrole!
Saiu do prédio e deu a volta nele, escalando a parede para olhar pela janela do diretor: alguns homens vestindo um uniforme nada estranho para ele circulavam pela sala, outros permaneciam sentados nas poucas poltronas, enquanto um deles, em frente à mesa, explicava aos outros que se ninguém escapasse dali, levaria dias até que os descobrissem, tempo suficiente para construir um perfeito esconderijo subterrâneo onde teriam condições de ficar por semanas, até que pudessem finalmente ir para outra cidade com suas novas identidades – e dissera isso apontando para uma pequena pasta de couro – onde fariam tudo outra vez! Aquele bando de malucos não seria um empecilho como o traidor morto havia sido...
Julius viu as chaves em cima da mesa junto à pasta; teria de entrar pela sala contígua! Desceu e subiu novamente em direção à janela ao lado; entrou e se alegrou ao ver a porta que dava para onde ele tanto queria chegar. Encostou-se a ela e esperou, esperou... Os ruídos cessaram, dando-lhe coragem para girar a maçaneta, l e n t a m e n t e... Dois deles dormiam em um sofá e outros dois nas poltronas; outro num balcão e o que parecia o líder roncava em cima da mesa. Julius não percebeu que faltava um, então entrou quase confiante e colocou a mão na pasta, passando-a para junto de seu corpo, nas costas, por dentro da calça. Amarrou-a mais apertada para não perder aquela preciosidade, quando ouviu passos apressados no corredor, combinados a um barulho de chaves.
Voltou para a saleta com tanto medo que teve de descer e correr ao dormitório, ainda na penumbra. A maioria dos pacientes já havia adormecido pelo chão ou pelas camas, amontoados, exaustos por terem vivido algo que nem recordariam. Falou com os que permaneciam nas janelas – em vão. Todos ali tinham algum tipo e nível de distúrbio mental... Mas e Penélope? Não fora ela quem os chamara? Sim, sua voz era inconfundível... Quem sabe ela era como ele? Procurou-a com os olhos, mas era impossível.
Julius só conseguiu vê-la quando levantou a última coberta do último leito da última fileira. Não havia mais ninguém num raio de uns seis metros. Ela fugia do brilho do dia que nascia, os olhos tão abertos e fixos que parecia morta. Não era como ele. Ninguém era. Mas era tão pequena e ofuscante, a única que sorria com todos os dentes...
Penélope soltou um grito abafado e puxou a coberta de volta. Mas ela era tão leve e alucinante, a única que fixava os olhos nele com interesse, imaginação e intenções... Julius entrou em seu refúgio e contou tudo que já havia dito aos outros sem resultado. Ficou extremamente surpreso quando ouviu que devia vestir-se com as roupas dos funcionários e levar aqueles documentos às mãos de alguém que verdadeiramente pudesse pôr fim ao terror. Logo ele, que queria tão-somente escapar com uma nova identidade! Esquecer definitivamente a faca rasgando seu braço e depois a garganta do outro...
Então perdeu o medo de ser encontrado com a pasta e adormeceu sonhando com o futuro que teria, livre e desconhecido ou heróico e admirado, tão envolvido pelo suave e intenso contato com aquele corpo que felizmente era tão oposto, a única... Alguém que não conseguia aceitar, nem negar, nem morrer. Fugiu. Mais uma vez.
Fazia horas que estava se balançando no meio do pátio com um vazio na mente que sempre tinha sido sua escolha quando Julius a encontrou. Mais uma vez. Vestido como um enfermeiro. Um enfermeiro louco?
Ele primeiro sentou à sua frente, chamando seu nome, em vão. Queria que ela fosse embora com ele, seja qual fosse a decisão que tomasse. Pronunciou algumas palavras muito mágicas das quais Penélope não pôde escapar, apenas aceitá-las.
Levantaram-se juntos e um abraço fez com que ela dissesse que sentia uma coisa muito boa quando seu rosto estava junto ao dele, o que era como se ela tivesse dito “eu te amo”, que foi o que ele entendeu, mesmo sem nunca ter ouvido antes, e foi o que o fez levá-la menos trêmulo até um empilhado de móveis de cozinha junto a um dos muros que os separariam do bosque. Mas ela não podia ficar sem seu remédio, não podia ficar sem seu remédio...
Os pequenos grupos amontoaram-se em volta deles, fazendo brotar em Julius o temor de não mais conseguir fugir, então apenas abraçou Penélope mais uma vez, longa e dolorosamente, e escalou o que lhe faltava para retornar ao desconhecido. Houve quem o seguisse. Ouviram-se gritos. A maioria, porém, ficou indiferente. Não uma moça, que se abaixou onde Penélope estava, as mãos cobrindo o rosto para esconder a dor e tudo que ela causava, inclusive o desejo de morte. Sorrindo com poucos dentes, ela lhe ofereceu uma pequena pasta de couro...
Penélope levou alguns instantes para perceber a insistência da outra, mas quando compreendeu do que se tratava, abriu a pasta violentamente e viu todas as identidades e mais alguns documentos, dinheiro e cartões de médicos e advogados... Pediu desesperadamente aos que ainda estavam ali que fossem atrás de Julius devolver o que a outra tinha roubado, mas um dizia que era muito novo, outro respondia que estava ocupado, outro que estava cansado...
Negou, então, sua loucura e foi ela mesma procurá-lo. Correu pelo bosque como uma pessoa mentalmente saudável, de quando em quando encontrando um fugitivo perdido; um estava nu. Sem a medicação da manhã, estava terrivelmente agressivo e não deixou que ela prosseguisse, esmurrando-a cada vez que tentava se desvencilhar. Derrubou-a no chão com uma fúria incontrolável, parando apenas de tentar arrancar sua roupa com os dentes quando ela conseguiu cravar os seus no pescoço dele... Como a vida era frágil! Uma veia cortada era suficiente para tirar a vitalidade do ser mais dominador! Ou para mandar qualquer um de volta à insanidade...
Penélope então correu como louca, gritando o nome de seu salvador por onde passava, até que desistiu. Atirou-se ao solo soluçando de incompreensão, pronta para fazer a pergunta que a tinha levado ao hospício, quando Julius a encontrou ainda outra vez.
– Eu matei um homem!
– Então agora somo iguais! Vamos escolher a mesma coisa! Pra que tentar impedir o inevitável?
– Essa pergunta é quase maldita!
– Quase...
Viveram juntos, então, de pequenos furtos e pequenas aventuras por alguns meses, até os cabelos crescerem o suficiente para serem aceitos em algum meio, e certo é que fizeram sentido um para o outro por alguns anos, enquanto as cidades ardiam em seus pecados...



Regina Majerkowski

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