ALGAZINE

COOL ZINE DO BAIRRO

22:45

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Postado por Algazine |


O dia começou mal. Na verdade, não me refiro ao início convencional, pois então não teria sido ruim, já que eu estava dormindo. Fui deitar por volta das 10 horas no domingo. Centésimo primeiro dia sozinho. Mais novecentos e eu talvez me sentisse bem.
Primeira cena do terceiro filme; finalmente podia dizer que o personagem combinava comigo. Não, não foi o personagem que mudou. E, mais uma vez, não era exatamente a primeira cena, claro.
Alguém me levou até o set; não lembro quem foi. As pessoas não eram nada além de imagens vazias pra mim, então eu não as olhava muito pra evitar de pensar o quanto eu era uma pessoa.
O bom (ou estranhamente bom) foi que por volta de umas 10 horas eu apaguei. Por alguns minutos, mas deu pra me sentir vivo. Quase tão vivo como antes, quando eu era... É que eu ainda não sabia o que eu era. Nem ninguém soube o que realmente aconteceu. Ninguém sabe ainda. Decidi que apenas uma pessoa saberá: eu mesmo! Brincadeirinha. Falando sério, agora: apenas a alma que co-ocupei. E depois que eu morrer e não tiver mais descendentes diretos, talvez você (mas vou fazer com que pareça apenas algo da minha imaginação).
Essa primeira vez foi muito rápida; durou apenas o tempo de uma das faixas de uma das trilhas sonoras de um dos filmes em que atuei. A última faixa, pra ser bem exato. Não vou dizer o nome senão vai ficar real demais. Admito que fico louco de vontade de dizer pelo menos o gênero ou algo que a identificasse sem sombra de dúvida, mas como estou até escrevendo com um pseudônimo, fica incoerente, não?
Então: eu senti minha mente ou espírito ou o que quer que seja apagando.
E voltando em outro lugar, em outro corpo, quem sabe em outro tempo (não, assim já é demais, parece o roteiro de um filme que eu conheço). Foi só num país diferente (pensando bem, o tempo era diferente por causa do fuso horário). Entrei em uma pessoa sem imagem e não-vazia. Ela era... Era algo que eu não era. Sim, era várias coisas que eu não era, mas basicamente essa uma coisa que me foi revelada mais tarde, ou melhor, meses depois, era o fator-mor.
Ela caminhava. Ia por uma estrada estreita com árvores altas dos dois lados e cercas de arame isolando quase todos os sítios, ouvindo a faixa de que falei. E cantava junto, com uma voz inaudível pra quem usava fones, porém se alguém passasse por ela, ouviria. Eu senti as cordas vocais vibrando.
Depois, tudo que senti foi uma raiva enorme por não ter notado alguns outros elementos que me ajudassem a identificá-la. Essa raiva foi meu primeiro sentimento diferente de dor. E gostei disso imediatamente. Até porque seria bom pro personagem. Não, isso foi mentira: eu não via minha vida profissional como um barquinho de papel carregando o soldadinho de chumbo (eu) pelo bueiro. Era mais algo tipo bengalas, muletas, macas, cadeiras de rodas, escadas rolantes, elevadores e até mesmo carros automáticos.
Raiva. Que não pude expressar, já que havia muita gente à minha volta tentando me reanimar dentro de um veículo em alta velocidade. Achando que eu estava drogado. Pensando no escândalo. Mais raiva. Pra logo eu me acalmar, dizendo pra mim mesmo que eu tinha de continuar sabendo lidar com o lado negro da força. Outra brincadeirinha! Eu quis dizer com o lado ruim da profissão.
Fui ao hospital e isto é tudo que se sabe sobre mim de estranho naquele filme: "fulano de tal desmaia durante as filmagens de filme tal devido a efeito colateral de anti-depressivos que vinha tomando há meses após tal fato." Jura que eu ia permitir que isso afetasse meu segundo amor! Que infelizmente naquela época também era o primeiro.
Adiaram as filmagens por duas semanas. Foi tudo de que eu precisei. Apesar de que se passaram dois dias até eu... voltar a ela.
Mesma rua; mesma música. Vi que esse era o padrão. Freneticamente anotei na minha memória tudo que ia vendo pelo caminho: placas de trânsito, de carros, qualquer identificador! E então: alegria! Minha primeira em tanto tempo! A faixa terminou e eu digitei aquilo tudo no google (vai dizer? Éramos ou não éramos seres humanos irracionais sem a internet? Você pode responder o que quiser, ok?) pra descobrir praticamente a localização exata de onde eu havia "estado". O segundo e definitivo passo, ou melhor, clique, foi no google earth (parece propaganda, mas não é - juro que não estou ganhando nada pra dizer os nomes desses sites).
Então pensei: onde está a emoção? A que eu senti quando não sabia nada sobre essa pessoa hospedeira-minha? E em como pulei etapas emotivas com relação a ela... E como talvez essa facilidade com tudo tivesse me levado à minha situação atual...
O pensamento que se seguiu foi: fuck! Meus genes precisam se acostumar com isso! E consegui ver a garota em tempo real.
Ela era normal. Quero dizer, não possuía uma beleza diferenciadora. Claro que só fiquei sabendo disso quando recebi umas fotos tiradas por uma pessoa que contratei pra me dar todas as informações relativas a ela pela... internet. Porque imagem de satélite sucks!
Mas ainda havia o fator-mor (lembra dele?). Sem ele, eu não entendia minhas experiências quero-ser-john-malkovich... No entanto, era tal deleite quando podia me sentir dentro dela (por favor, não coloque conotações mais ousadas em minhas palavras, pelo menos ainda não) que não me importava mais com explicações.
Bem, na verdade, até que umas explicaçõezinhas caíam bem, e comecei a falar com ela através de um site nacional de relacionamentos (acho que chega de propagandas... Nosso mundo já está tão incrivelmente perdido por causa delas...) no qual ela tinha um perfil visitadíssimo fazia alguns anos. Visitadíssimo. É claro que ela não acreditou que eu fosse eu; por fim, me rendi a uma condição de fake. O que me levou a não ter remorsos quanto a inventar uma história com relação à nossa música, pra que ela só a escutasse nos finais de semana, em casa, num determinado horário, e no repeat! E aí comecei a ver como ela era verdadeira.
E também como era amada. E como amava. Duplo sentido. Isso meses depois, huh? Inclusive terminaram minhas filmagens. O que me prendia? Os satélites, os fios, os arquivos recebidos ou os salvos? Isso mesmo.
O medo de dar um passo diferente deixava minha alma presa num castelo kafkiano. E foi quando acreditei que não precisava dela fisicamente que tudo piorou.
Não vamos ser ingênuos. A vida dela era perfeita! Bom, na maioria dos aspectos... Por que ela a trocaria por mim? Já a minha... Havia aquele buraco. Um buraco enorme, escuro e entediante. Isso porque graças a ela já não era execrável. E, no entanto, eu também não podia deixá-la pra trás. É difícil pra mim expressar essas coisas em português, espero que não tenha ficado insoluvelmente confusa essa estrutura.
Ainda mais porque nós chegamos a uma solução! Por sorte, ou melhor, por meu talento (por que negar?), eu tinha bastante dinheiro pra ficar uma semana por mês com ela! E agora vocês podem imaginar todas as conotações possíveis!
A pergunta número 1 que vocês estão se fazendo é: "Ele finalmente contou a ela?" Se não é, deveria ser!
Bom, eu contei, sim. E ela não me largou por isso! Só me lança uns olhares estranhos de vez em quando... Não lança, não, to brincando!
Quanto à pergunta número 2, prefiro dizer somente que as lendas não existem pra serem explicadas, apenas pra mostrar como fatores-mor são difíceis e fáceis de achar ao mesmo tempo!


Regina Majerkowski

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