ALGAZINE

COOL ZINE DO BAIRRO

22:19

OS SONHOS DE ...

Postado por Algazine |







Regina Majerkowski


“Eu sempre acordo quando toca Chop Suey. Acordo sempre em um lugar diferente. Sempre eu...”
Dessa vez, acordei na Assis Brasil. Senti que estava vindo de dentro de um ônibus, porque segundos antes de aterrissar, fiquei flutuando no meio da calçada, ainda experimentando a sensação que um veículo em movimento nos causa.
Então encostei suavemente nas pedras do calçamento, mais uma vez enrolada no meu edredom branco com pequeninas folhas verdes, flores brancas e botões azuis; de um lado, é claro. E pensei: eu sempre acordo quando toca Chop Suey! E continuei pensando: engraçado que ela toca duas vezes seguidas; preciso arrumar isso.
Chovia, então rolei até a vitrine de uma loja e arrumei minhas coisas em cima da muretinha que me impedia o contato direto com o vidro do mercadinho. Eram apenas alguns pares de sapato, obviamente, meu remédio e a mochila, onde ficava meu segredo, a carteira e o celular.
Continuei bem enrolada na minha coberta porque fazia um pouco de frio, tomei meu remédio e me recostei na banquinha de frutas pra tentar dormir outra vez...
Quando estava quase conseguindo, apareceu um mendigo louco, de pele muito escura de sujeira, o cabelo mais duro que um caroço de pêssego – inclusive parecia-se muito com um – totalmente vestido de negro e com um cheiro, ou melhor, um odor, melhor ainda, um fedor... Certo, uma caatinga insuportável de urina, remédio e naftalina.
Ele só parou e ficou me olhando; não disse uma palavra sequer, mas seus olhos pareciam dizer: “de onde viemos...???”
Eu procurei não tirar meus olhos dele, não por medo, mas por saber que a qualquer momento ele precisaria de mim; eu tinha de ficar alerta!
Vindo na direção oposta à que ele viera, um velho e uma menina pararam pra olhar as frutas. A menina, muito loira e muito cacheada e muito de vestidinho e meia-calça, queria caquis. O velho, de cabelos quase longos, prateados e ensebados na cabeça com algum produto que não deixava o vento interagir com eles, vestia uma roupa cinza feita sob encomenda no início do século passado. Ele não queria caquis. Também não nos queria. E disse: “Não tens vergonha de andar pela rua nessa imundície? Que tragédia, vais contaminar o ar que minha neta respira!”
O louco não deu nenhum sinal de haver escutado aquilo. Mas eu sim, pois ergui um pouco o corpo de lagarta pra que o velho me enxergasse. E ele continuou discursando: “Tu não podias ser como aquela menina? Bem vemos que ela vive nas ruas, porém mira seu cabelo! Até brilha! A pobre, entretanto, parece não ter um centavo!”
O mendigo, então, virou-se para o velho e para suas palavras munidas puramente de um veneno ácido-sulfúrico e fez com ele o que tinha feito comigo.
Bem, o avô daquela menina tão agradável de se olhar não gostou nadinha da atitude de seu novo porém eterno inimigo, e explodiu em vitupérios: “Eu odeio a pobreza! A pobreza é nojenta! É suja! Eu abomino os pobres! Eles fedem!”
Ele disse mais algumas vezes “eu odeio a pobreza” em meio a outras injúrias e xingamentos, e eu pensei: “me parece que ele gosta de falar mas não faz nada”. E pensei ainda: “Talvez esse mendigo esteja louco de fome.” Pensei eu mais algumas coisas, certamente, e levantei, um pouquinho contrariada por ter de me desenrolar.
Deixei tudo onde estava, menos a mochila, que era invisível pra mim, mas não para os outros, e entrei no mercado. Fui até o balcão e pedi qualquer coisa pra comer e tomar, algo que parecesse um almoço. Enquanto o funcionário buscava um frango assado e uma caixa de suco, fiquei tentando abrir o fecho da mochila pra pegar a carteira, tarefa que sempre me causava certo transtorno, não é verdade?
Por sorte, um ser magneticamente interessante estava ao meu lado esperando que outro funcionário pesasse e embrulhasse uns biscoitinhos amanteigados com goiabada em cima – eram uns biscoitos de um amarelo muito muito clarinho – e por dentro de sua camisa da cor dos biscoitos ele sentiu que podia fazer algo por mim. Ele tinha os cabelos muito negros, grudados na cabeça com algum produto que não os deixava ensebados nem parecidos com caroços de pêssego, mas tão duros que um de seus fios poderia ser usado para perfurar minha pele. Pensei: ”Quando quiser fazer mais uma tatuagem, não vou perder muito tempo procurando um doador, não dessa vez.” E continuei pensando: “Só preciso saber onde ele mora.”
Seu nome era Accel, e ele conseguiu abrir minha mochila. Sorri, paguei pela comida e trocamos nossas primeiras palavras: “Isso não é pra mim, é pro mendigo.”
Meu nome era Notty, e eu pensei: “Nossa!” Sei que ele pensou isso também.
Saímos juntos, entregamos nossos pacotes juntos e então eu soube que ele já conhecia aquele louco há anos e que toda semana comprava biscoitinhos amanteigados pra ele. Às vezes com goiabada, às vezes não. Ele não sabia ao certo se o mendigo gostava da cor, do sabor ou do aroma, porque primeiro o pobre abria o pacote e ficava cheirando, depois pegava um por um e olhava e olhava e olhava, pra depois comer bem devagar, de olhos fechados. Tendo goiabada ou não.
Coloquei minhas coisas todas dentro da mochila, até o edredom, que era tão velho que nem tinha mais recheio, e Accel me perguntou o que eu fazia jogada numa calçada se tinha várias notas de 20 e de 50 na carteira.
Respondi que era por causa do meu segredo e perguntei pra onde ele estava indo. “Pra casa”, ele disse. E eu fui junto com ele. Era inevitável.
Andamos calados durante todo o caminho, porém havia algo que me fazia caminhar cada vez mais perto dele, e também uma outra coisa, ou a mesma, que fez com que ele passasse o braço por cima do meu ombro. Aquilo me machucou, mas eu não podia impedir. Então me deixei sentir tudo de bom e tudo de ruim que o contato me causava. Idêntico ao que eu sentia secretamente olhando as fotos no meu notebook secreto. Até que ele me fez mais perguntas, enquanto abria um portão muito baixo e muito enferrujado: “Tá, e aí? Entramos? Consegue enfrentar uma família? Minha irmã tem uma filha.”
“Sim, eu já sabia”, eu respondi com a alma lavando. Meu cabelo escorria liso pelo corpo por causa da chuva, vermelho como o fogo que arde sem se ver, longo como o sofrimento de quem nem sabe mais porque sofre.
Entramos. Seus pais acharam um absurdo ele me trazer pra morar ali, mas eu disse que seria por pouco tempo e que os ajudaria a terminar de colocar o piso na casa, pois tinha muito dinheiro – eu não contava a ninguém, mas ele vinha do significado que eu uma vez dera às palavras – o que os agradou muito, mas deixou Accel insatisfeito. Ele também sentia que não podíamos nos separar e achava que um seria a cura para o outro.
Levou-me a seu quarto. Vi em cima de uma prateleira os únicos objetos sem poeira daquele lugar: óculos, é claro, seu remédio e uma caixa transparente onde eu podia ver brinquedos em miniatura bem antigos, mas ele não.
Compartilhamos nossos segredos – ele tinha a dor dos que nunca tiveram nada. E pensamos juntos: ”Agora daremos um ao outro tudo o que nos falta”.
De repente, escutamos Come into my sleep e ele não pôde mais ser visto por mim.
Ele sempre dormia quando tocava Come into my sleep. Dormia sempre em lugares diferentes. Sempre ele...
E sempre acordava sozinho, como eu dormia sozinha.
Sempre? Até o sempre tem um fim. Quando ele acordasse comigo e eu dormisse com ele, nossa loucura faria sentido ao menos pra Accel e Notty*, e então mudaríamos nossos nomes para Lygia e Robert**.


*Lexotan proporciona aumento da sonolência e relaxamento muscular.
**Provigil trata a sonolência excessiva diurna.

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