ALGAZINE

COOL ZINE DO BAIRRO

10:45

ASSOMBRAÇÃO ( Italo Zen)

Postado por Algazine |


Alta madrugada. Quase três da manhã. Fui esquentar a água pro café, que me mantém acordado nessas noites em que não durmo. Antes de voltar ao meu quarto, dirijo-me ao pátio dos fundos, atraído pela claridade do luar. Um poderoso acesso de tosse toma conta de mim. "Deve ser o cigarro", penso, mais por hábito que por paranóia. "Ou o sereno"; mas essa idéia, que, no entanto, era a mais lógica, passou muito por alto nas minhas probabilidades. Só pode ser o cigarro. Desde que comecei a fumar, sempre me assombrou o pressentimento de morrer de câncer no pulmão. Talvez isso se passe com todos os fumantes. Não sei, comigo é assim. Começaram então esses tardios arrependimentos, aquele pavor da morte próxima, o terror do mal irreversível. Pior que o condenado à forca, que ainda pode sonhar com uma fuga repentina, a peste em mim alojava-se no interior; sim, meu padecimento será mais penoso que o do enforcado, uma vez que morrerei aos poucos, sob o peso da consciência, do remorso e, enfim, do desespero. Meu coração bateu acelerado, de medo; arranquei uma toalha do varal para abafar o som da minha doença, encostei-me no muro e encarei a lua. O céu estava lindo; a lua, cheia. As nuvens formavam uma visão fantástica, dessas que não são comuns. A natureza, enfim, zombava de mim. Eu dei uma cuspida com toda a força na direção do céu e retornei ao meu quarto, com uma tímida esperança de que a causa da minha enfermidade fosse mesmo o sereno. Eu, que desde há muito sou sensível ao belo, fiz poemas sobre o meu passado, para me distrair dos negros pensamentos que me rodeavam.
Mas aquela irreprimível irritação na garganta não permitia que eu afastasse aquelas idéias sombrias. Larguei alguns escarros no chão, queria saber se não cuspia sangue. Nesses casos, a gente nunca sabe, e eu não entendo muito disso, nunca conheci alguém que teve câncer, tampouco li muita coisa a respeito. Mas não cuspia sangue, ainda bem. Talvez não fosse esse o primeiro sintoma nos cinco primeiros minutos em que a moléstia se manifestava...
Nunca sofri de asma ou coisa do tipo; não sei o que é ter falta de ar, mas acho que senti isso hoje, pela primeira vez. Uma tosse estranha, que de uma certa forma me doía em algum lugar, uma sensação muito ruim, que fez meus nervos tremelicarem um pouco. Acho que era mais difícil puxar o ar, e me doía assim, aqui dentro, na altura do peito (será que era o coração?), e foi isso, eu acho, que me assustou. Acho que vou acender um cigarro. Será que tem cura? Afinal, não faz três décadas que eu carrego esse vício!
E mais, juntando as vezes que tentei parar, pode-se reduzir quase quatro anos desse tempo, sim, pode-se! A tosse acalmou um pouco. Acendi o cigarro. Tanto me faz. Tive de me levantar pra ir ao banheiro, e na volta acendi. E por descaramento fui novamente lá pra fora enfrentar a lua, mas ela agora se escondeu atrás das nuvens; muito bem, aprendeu a lição. Mesmo assim, manifestei de novo meu desprezo por toda aquela beleza atrevida, e cuspi ainda com mais força; depois, atirava toda a fumaça pra cima, que é pra mostrar que eu tenho personalidade, e que também posso caçoar das coisas divinas. Entrei no quarto muito contente e satisfeito comigo mesmo, sim, por que não? Acho que tenho todo o direito. Acho que vou ler um livro e ouvir música clássica; sim, pois sou um tipo muito culto. O café, agora, além de amargo, está frio. Não vou tomar.
Fiquei uns minutos pensando na minha vida de agora em diante, e há certas vantagens: não preciso mais cuidar do colesterol nem evitar o diabetes, não preciso mais me preocupar com a faculdade que não fiz, ou com o sonho que não tentei realizar. Foi até melhor, não haveria mesmo tempo, e só perderia horas de liberdade. Sim, tudo aconteceu por alguma razão. Por natureza, costumava ser bastante cético, mas começo a pensar diferente (mas, então, na aproximação do fim, ateus não se convertem, e criminosos não se arrependem?). Não que eu mude agora pra ser perdoado, eu lá preciso disso! Mas passei a ver de outra maneira, porque eu reconheço quando mudo de opinião, sou muito expansivo; acho que, antes de cético, tenho um pouco de agnóstico a partir de hoje; sim, por que não? Até o dia de minha morte, posso vir a ser católico, evangélico, protestante, pagão, adventista, ateu, budista, maçom, ou o que me apetecer!
Posso fazer um filho em alguém, com o perverso intento de deixar no mundo uma criança sem pai, ou mesmo com a egoísta resolução, mas não maldosa, de querer que uma parte minha continue viva após ter eu partido. Possuo tantas opções; interessante como sou criativo! Curioso: fumei e a tosse não voltou, mas vai ver é assim mesmo, a gente nunca sabe. Silêncio. A ondulação charmosa da fumaça no ar sem vento do meu quarto; que imagens artísticas elas formam! Que infortúnio! Caiu cinza no chão. Pra me vingar, soprei com toda a saúde de meus pulmões aquelas figuras azuladas, que se dispersaram estonteadas, e assim mesmo! Apago o cigarro e me deito. Apago também a luz. Não posso dormir, não vai muito já tenho de levantar-me. Sinto um profundo vazio em mim, que me incomoda. Fico, então, tranqüilo: deve ser fome, e eu, com fome, não consigo dormir.

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